terça-feira, 24 de maio de 2016

Invocação 



A variedade e a profundidade dos sentimentos do coração humano sempre me impressionam. É também impressionante que sejam tão ocultos aos outros e que seja tão difícil a comunicação entre os corações. É por isso que encontrar quem passa por dificuldades e dilemas semelhantes aos nossos é coisa tão preciosa. Nisso a poesia sempre me serve de consolo. E não só a poesia. Às vezes é num filme que encontro algum eco familiar, do tipo que faz com que eu me sinta um pouco em casa. Também não é raro encontrar esses tesouros sem nome nos lugares mais improváveis e surpreendentes. Embora os suspiros de frustração sejam rotina na minha vida, esses momentos deliciosos me fazem esquecer tudo. São como oásis no meu deserto.

Ter todos esses sentimentos indecifráveis aos outros sempre me deu muito trabalho. Com o tempo eu aprendi a nem tentar compartilhá-los, mas, em vez disso, usá-los sempre para tentar dar aos outros o que tanto me falta. Uso-os para imaginar os sentimentos alheios com a maior precisão possível – o que também não é grande coisa, pois “a alma de outrem é outro universo com que não há comunicação possível” ¹, mas tem sua utilidade, já que transforma totalmente qualquer diálogo numa troca mais rica. Eu sofro muito no meio de conversas banais sobre coisas fúteis e irrelevantes e tentar fazer um rascunho da alma de quem fala comigo acaba me livrando dessa tortura e me conduzindo a momentos mais agradáveis. Mas o fato é que eu continuo totalmente só. Certamente tão só quanto aqueles que desabafam comigo.

Eu me lembro de ter encontrado o perfeito alívio há muitos anos. E me lembro bem da sensação incrível que tive. Falar com Deus era uma experiência totalmente nova, tão diferente de tudo que já havia experimentado: era falar com quem me conhecia bem melhor que eu mesma; era falar com quem compreendia completamente a intenção de minhas palavras ainda que mal colocadas; era falar com quem tinha interesse em meus mudos sofrimentos tão invisíveis a todos os demais. Falar com Deus é isso. É ter um ouvinte sinceramente interessado em nós que identifica e conhece cada sentimento e dor que lhe apresentamos e que não nos ouve com um coração já inclinado a maus julgamentos injustos. A coisa toda era tão linda que me parecia um sonho. Eu continuava sendo a ilha de sempre, porém, já não me sentia plenamente impercebível.

Quando começo a me ver novamente solitária entre as pessoas (o que é muito comum para um temperamento como o meu), já sei que preciso entrar no meu quarto, como Jesus nos ensinou a fazer, fechar a minha porta e falar com o meu Pai que vê o que está oculto aos olhos dos demais. Quando me sinto de novo invisível como Agar, volto meus olhos para “El Roi” ², o Deus que me vê. Faço como  Jesus, que se retirava para estar à sós com Deus. A oração conduz nossas almas cansadas até o coração de quem realmente nos ama e ama com perfeição. Orar é estar com quem realmente quer nos ouvir ³. É uma festa para um coração solitário, sufocado pelas falsas gentilezas humanas. Quem ainda não experimentou, deveria logo tentar. Jesus é Deus que se fez homem e ele entende os homens. Jesus calçou nossos sapatos e percorreu nosso caminho doloroso. Viveu nossas tristezas, foi tentado, julgado, injustiçado, mal compreendido e humilhado; ele também foi traído, sofreu a dor da morte de um amigo, se viu abandonado por seus próprios discípulos em seu momento de maior angústia. Ele sofreu tudo e não há dor que ele não conheça. Não há abandono ou solidão com que Jesus não se identifique. Ele sentiu as agonias de uma morte eminente e pavorosa e sofreu dores físicas também; Jesus apanhou, foi ridicularizado e cuspido e conspiraram contra ele; Jesus foi abandonado por aqueles que ele curou e libertou: ninguém sabe melhor que ele  o que é ingratidão. Ele foi acusado de coisas que não fez e foi perseguido por invejosos; ele sofreu por fazer a coisa certa, conviveu com gente interesseira, amou os que lhe desprezavam. Se o que procuramos é um amigo que nos entenda completamente, esse amigo só pode ser Jesus! O alívio para o peso doloroso de uma vida solitária está a uma oração de nós!


"Eu te invoquei, ó Deus, pois me queres ouvir; inclina para mim os teus ouvidos, e escuta as minhas palavras."

Salmo 17:6




¹ Pessoa, F. Poesias Inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática. 1955. (imp. 1990). p. 159.
² Gênesis 16:13,14
³ Salmo 17:6